quarta-feira, 23 de março de 2011

O PIANO

 
 
"Aos dezessete anos eu sonhava com um mundo onde ninguém, em hipótese alguma, falasse sobre o tempo. Escrevia contos em que um sujeito mal terminava de pronunciar “que chuva, heim?” e um piano estraçalhava-se sobre sua cabeça. Se algum idealismo eu já tive, foi esse: tornarmo-nos adultos sem nos entregar à comodidade do lugar comum, viver a vida sem embolorá-la no mormaço do dia-a-dia. Para quem não acredita em Deus, como eu, abandonar a infância implica a incontornável convivência com o absurdo. Que da água e dos minerais tenham surgido protozoários, cachalotes, eu e você, não é o mais lógico dos acontecimentos. Que das muitas relações sexuais de seu pai e sua mãe, justamente naquela lá, um óvulo tenha sido fecundado e dado início à sua existência – que sorte, não? (Quantos possíveis eus não terminaram em absorventes íntimos ou lenços de papel, no fundo de uma lata de lixo?).
A falta de sentido não me levava, contudo, ao niilismo. Pelo contrário. Já que era tão improvável estarmos aqui, tudo era valioso e, fundamentalmente, engraçado. Não tive um Deus para ordenar-me a realidade, mas as piscadelas cúmplices de Julio Cortázar, Woody Allen, Campos de Carvalho, Monty Python e outros artistas, de dentro de seus livros e filmes, tornaram mais fácil a aceitação e mais intensa a fruição dessa maravilhosa barca furada.
O que mais me angustiava na adolescência não era, portanto, a percepção do absurdo, mas como os adultos pareciam não se dar conta da estupenda improbabilidade de estarmos aqui por esse breve período, tendo ao nosso dispor o sexo, o baião, o bife de chorizo e – mais recentemente, que maravilha! – as cervejas artesanais. Eu os observava comentando a reforma da portaria do prédio ou aflitos com as parcelas do sofá e desejava que aquele piano caísse dos céus: a vida passava e eles não se davam conta.
Semana passada, quando soube da morte de J. D. Salinger, reli O apanhador no campo de centeio. A história de Holden Caultfield tocou-me mais do que da primeira vez que a li, aos quatorze. Talvez porque agora o adolescente revoltado com a falta de sentido da vida e a hipocrisia dos adultos não tenha encontrado em mim um cúmplice, mas um inimigo. Hoje, aos trinta e dois anos, quando fecha-se a porta do elevador e o silêncio toma aqueles três metros quadrados, eu viro para o vizinho e digo: que chuva, heim? Tenho trabalhado muito, me afligido com as contas e faz tempo que não faço um jantar para o meu amor. É preciso abrir os olhos, enquanto é tempo. Para isso servem os livros, para caírem sobre nossas cabeças como pianos e estraçalharem, mesmo que temporariamente, tudo o que não for fundamental."
 
Antonio Prata
"O Estado de S. Paulo", 8 de fevereiro de 2010
 

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